Setembro Amarelo

Nina Sampaio
8 min readSep 3, 2020

Na canção “Hotel das estrelas”, composta por Jards Macalé e magnificamente interpretada por Gal Costa, a gente pode ouvir “dessa janela, sozinha, olhar a cidade me acalma”. Já olhei cidades através de janelas, sozinha, sem me acalmar. E tais janelas sequer eram minhas. Ou de casas que eu mesma habitava. Eu estava de passagem e sem lugar. Fraturada sem ninguém perceber. Ou sem que as pessoas que percebiam, saber o que fazer com a constatação de minhas fraturas. Foram longos 20 anos de diagnóstico de depressão que me ensinaram que a dor que me imobiliza, que me irrita, que me cansa e que pode até mesmo me matar (seja por minhas mãos, como quase já foi, ou seja porque o corpo se desgasta mesmo e o coração pode não aguentar e a cabeça, como numa canção de Walter Franco: pode explodir!) pode também ferir as pessoas ao meu entorno.

Por anos imaginei que era o mundo contra mim. Faz parte também do quadro depressivo a gente desenxergar as pessoas ao nosso lado. Daí tantas vezes sermos confundidos com ingratos (e muitas vezes sermos mesmo e de fato), especialmente por nos sentirmos tão sozinhos. A depressão pode descaracterizar a melhor e mais forte das personalidades. Quantas vezes nos foi impossível, após aceitar aquele convite de amigos para sair, após tomar banho, trocar de roupa e cumprir as tarefas cotidianas mais simples e que mais tínhamos sentido dificuldade em cumprir durante a semana, abrir a porta de casa e de fato sair? E enfrentarmos, por isso, horas de autojulgamento, de vergonha, de tristeza, para depois, enfrentarmos o julgamento (ou o que a gente sinta como julgamento)da pessoa que ficara esperando e a alcunha de “furão/furona” de compromissos? Pegar o telefone para confessar: “não dá pra mim, estou mal” parece uma atitude distante, difícil — porque algumas crises depressivas afetam também o poder de comunicação. E o desenho pode ser também em relação a emprego, a escola: eu mesma já me vi enfiada em um buraco tão gigantescamente profundo que cumpria apenas o itinerário da cama para o banheiro (nunca para tomar banho, apenas para as necessidades mais básicas, contando que as sinapses neuronais bagunçadas bagunçam nosso corpo físico: não é incomum, num quadro severo de depressão, nosso intestino ou se soltar de vez em irritantes diarreias ou se trancar em enlouquecedoras prisões de ventre!) e do banheiro para o sofá da sala. Foram dias de falta no emprego, de telefone ou desligado ou tocando ao meu lado sem eu atender. E eu sou uma mulher branca. Se tive uma infância e adolescência difíceis, marcadas por uma pobreza econômica significativa, com épocas de não ter feijão, nem arroz e nem carne de qualquer tipo nem ovo e comermos apenas pão com manteiga, a cor de minha pele não me obstaculizou caminhos para eu estudar, para eu fazer faculdade e ingressar na pós graduação: e, por fim, hoje, não posso mais falar de pobreza. Apesar de estar desempregada. Apesar de não contar com nenhuma estabilidade financeira. Hoje, não consigo deixar de pensar: e um quadro depressivo severo em pessoas/trabalhadores(as) negras e pobres? Em quem é empregado doméstico? Catadores de materiais recicláveis? Garis e margaridas? Pessoas que estão em situação de cárcere? Pessoas que estão em situação de rua? Pessoas que são historicamente invisibilizadas? Há estudos que apontam o quão grande é o número de suicídios entre pessoas idosas. É difícil de entender os motivos que se acumulam para dificultar a busca por ajuda e para que a ajuda se efetive de fato? Com o passar dos anos, o sentimento de nulidade, de não servir para nada, de ser só mais trabalho para filhos e netos que estão às voltas com afazeres e a busca pela sobrevivência…

Esses vinte anos de convívio com a depressão me fizeram entender que toda campanha para explicar o que é a doença, de como buscar ajuda ao experimentar mais de um sintoma persistindo e incomodando são necessárias e devem se espalhar para chegar a todo mundo. Se se disponibiliza o mês de setembro para fazê-lo, que todos os dias do mês de setembro as informações estejam claras, disponíveis, circulando e se democratizando, para que cheguem a todo mundo, a todos os cantos. Mas que, passado o mês da campanha, não deixemos de lutar por políticas públicas de saúde justas e democráticas.

Pois depressão não é uma fase ruim, não é sobre luto, não é uma tristeza que passa já já, não é um estilo de vida, não é sobre ser antissocial, não é sobre não gostar de gente, não é sobre ter autoestima baixa, apesar de que o luto que não passa, que é atropelado, pode ser o botão de acender alerta de adoecimentos (vocês conseguem pensar na urgência de acompanhamento psicológico e de todo tipo de amparo para mães e pais que perdem seus filhos para a violência de Estado? Se a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no Brasil, como ficam os seus parentes que permanecem vivos? Como vivem os jovens que são negros e periféricos e passam por corriqueiros “baculejos”, “enquadros” de policiais?), assim como experimentar longos períodos de desemprego e de julgamento por isso (vivemos em um país em que venceu para ser dirigente maior uma pessoa que disse que negros devem ser pesados em arroba e que ficam gordos de não trabalharem, são preguiçosos; a expressão “vagabundo” é bastante comum e aplicada mais comumente a que grupos de pessoas, né?), junto às privações materiais da dificuldade econômica podem adoecer. Sendo uma doença e sabendo todos nós que tem acometido muitas e muitas pessoas nos últimos tempos: precisa ser encarada como questão de políticas públicas. É uma doença, mas não pode estar destacada de raça, de classe, de gênero, de idade, de localidades.

A democratização de atendimento psicológico (e aqui entra a defesa (e melhora) do SUS), a extinção da violência de Estado que mata, que aterroriza, que coloca populações inteiras no convívio com a mais dura situação de irreconhecimento de suas humanidades, a luta por creches, para que cuidadores (geralmente mães e avós) de crianças possam trabalhar e deixar as crianças em segurança, a luta por educação de qualidade (onde se discuta o cuidado de si e o cuidado com o outro, assim como com o meio onde se vive, onde haja educação sexual para que meninos e meninas cresçam saudáveis e a cultura do estupro e o desenvolvimento de masculinidades tóxicas comecem a ser extinguidos — por aqui perpassa a possibilidade de convivência doméstica mais livre de violências e também divisão de trabalho mais justa e menos adoecedora, por exemplo). Pois é, meus caros, engajar-se por um mundo mais justo, onde caibam todas as existências com dignidade é um modo de continuar o setembro amarelo por todos os dias de nossas vidas.

Como eu contava: eu vivi muitas crises depressivas severas. Achava que estava sozinha. Em algumas, estive mesmo, em outras, não: havia amigos. Inclusive a primeira grande crise depressiva severa que vivi, e a que permitiu o diagnóstico, do alto de meus 18 anos, nos idos anos de 2000, onde quase não se falava sobre isso (infelizmente, pois sem informação tudo é muito pior), eu a vivi com a minha mãe viva: e ela se perguntou, em voz alta, comigo no colo, o que fez ou o que deixou de fazer para que eu estivesse daquele jeito — sim, a gente quando adoece afeta muito e bastante as pessoas ao nosso entorno.

Mas é isso: há sempre os amigos, na minha história de vida particular: me sei uma pessoa sortuda para boas relações e sou grata por isso. Caminhei por muitos consultórios de psi’s — das mais diversas formas: gratuitamente, por programas de universidades, esperando em filas demoradas, mais baratos por iniciativa dos profissionais, pedindo na cara dura descontos, recebendo ajuda de amigos e até mesmo caridade pópulo-cristã (inventei essa expressão, mas acho que ela dá conta do recado, né? É aquela ajuda que a pessoa faz e espalha pro mundo e espera por toda a vida gratidão, mesmo que pise na bola com você) de parente de amigo, e na maior parte das vezes, fazendo muito sacrifício para pagar as sessões. Nunca frequentei psicólogo de forma ininterrupta. Nunca pude fazê-lo por questões econômicas. E é por esse motivo que insisto na importância da democratização de maneiras de prevenir, diagnosticar e tratar, na importância da construção de espaços públicos que permitam dos cuidados com as crianças aos cuidados com os idosos, perpassando jovens e adultos, na criação de meios para que todos nós levemos vida (em todas as etapas de nossas existências e das maneiras que as queiramos viver/performar — isso mesmo: vocês já pararam para pensar no desenvolvimento, nos caminhos, na segurança psicológica de pessoas trans, de travestis, de gays e lésbicas?) mais digna.

Gosto muito de um comediante chamado Yuri Marçal e da iniciativa dele de promover a necessidade do cuidado com a saúde mental. Ele permite, em seus shows, a meia-entrada para mães solo e para pessoas que fazem terapia. Dá para compreender a lógica que ele segue ao facilitar a entrada em seu show a esses dois grupos de pessoas, né?

Entender a depressão como problema particular de cada um, com o qual cada um tem que lidar, tem parte com a gerência cruel da vida social, com a naturalização das desigualdades e com coabitar sem refletir com o empurramento para a inexistência de vários grupos de pessoas.

O convívio com a depressão me fez entender que se enfrentei crises depressivas severas me sentindo sozinha, foi muito mais por conta dos pontos que aqui abordei (a não democratização das informações e dos meios de cuidados, prevenção, diagnóstico e tratamento por vivermos sob modelo de vida baseados na injustiça e crueldade social, racial, econômica, de gênero e etária) do que da existência de gente de meu entorno interessada em me ver permanecer em estado de sofrimento mental — apesar de também eu ter experimentado ouvir comentários como “isso é falta de Deus”, “como pode você tão bonita e jovem ficar desse jeito?” e etc. Mas atribuo, hoje, tais comentários à falta de informação e ao fato de a depressão não ser amplamente debatida nos espaços públicos. Daí a importância do setembro amarelo enquanto campanha, tantas vezes criticado nas redes sociais como “hipócrita”, concepção que pode levar à permanência do debate sobre a doença ao âmbito do individual, do privado.

Que o setembro amarelo vigore, que sirva para informar, que as informações cheguem ao máximo de pessoas — sempre vai acontecer de ser o momento primeiro para alguém que está precisando daquele número de telefone (188, do CVV — Centro de Valorização da Vida) para ser o pontapé inicial dos cuidados que lhes podem não apenas fazer ficar vivo, mas especialmente ficar bem. E que o compromisso com a prevenção, com o diagnóstico e com o tratamento da depressão seja constante em nossas vidas, que se expanda, que lancemos um olhar nada classista, nada racista, nada umbigo-egoísta, nada raso para nenhuma expressão de sofrimento mental (e o alerta para com a indústria farmacêutica e a psicologização de tudo para vender doenças e curas devem sempre estar em pauta), porque as buscas por soluções para o sofrimento mental não podem estar apartadas da dignidade da pessoa humana, dos direitos humanos, não pode não alcançar a todos.

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