Nina Sampaio
3 min readOct 3, 2020

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Lembro que um dos livros teóricos que mais gostei de ler, no começo de minha graduação e que chegou a mim também por pura serendipidade, foi o Memória e Sociedade, lembranças de velhos. Lembro que amei, na leitura, o modo mesmo que o livro foi organizado: dois capítulos de teoria, entrevistas e dois capítulos de análise das entrevistas (mais ou menos isso, já me falha a memória...). Eclea Bosi abre o livro falando sobre a escuta especializada e nos diz que ouviria aquelas pessoas que foram seus entrevistados infinitamente. Ela fala em "escutador infinito".
Lembro de ter me sentido muito próxima de cada um dos entrevistados, de sentir como se estivesse nas salas de suas casas, nas suas cozinhas, tomando chá e conhecendo, através deles, a história da cidade de São Paulo.
Acabo de ler "Memórias da plantação, episódios de racismo cotidiano" que tem estrutura muito similar, porém com menos entrevistados. O leitor vai ouvindo Alícia e Kathleen narrarem suas experiências de racismo cotidiano e acompanha as costuras de conversa com Grada Kilomba como acompanha com Eclea Bosi e seus interlocutores.
Teoria e experiência se mesclam e a gente é convidado a se somar em busca de respostas. Escrevi bastante nas margens do livro e entendo que não é possível fechar o livro, quando se é um leitor branco, e não desejar pensar as maneiras mais eficazes de se furar o consenso branco, um dos três lados da triangulação do racismo. Kilomba conclui o livro apontando maneiras de as pessoas negras se descolonizarem (A descolonização do eu) diante de uma relação onde há séculos um dos componentes defende pesadamente a manutenção, a repetição de cenas coloniais. Pior: onde esse lado, a branquitude, deseja aprisionar as pessoas negras nessa cena colonial.
É uma leitura crucial para pessoas negras tornarem-se sujeitos numa sociedade supremacista branca.
Gostaria muito de saber das pessoas brancas que se perguntam sobre se há possibilidade de se construir uma identidade branca antirracista (uma que não pretenda repetir/ atualizar cenas de colonialidade, que deseja coabitar sem outricizar, sem se ver a partir do outro racializado, sem fantasiar um outro exótico, lindo e/ou perigoso, etc.), como leram este livro, o que pensaram a partir dele, o que cada episódio trouxe de reflexão, como se deu o processo de ligação com Alícia (pequena e já mulher), com Kathleen e com a própria Kilomba.
No episódio da conversa de Kathleen com a vizinha branca que exibia um boneco negro na entrada de sua casa, você, leitor branco, se permitiu se imaginar compondo a cena, se perguntou se sua presença solidificaria o consenso branco ou se você poderia também descolonizar-se e furar esse componente da triangulação que a autora desenha nas cenas de racismo cotidiano (uma pessoa branca que agride, uma pessoa negra que é atacada e uma platéia branca que assiste e dá corpo ao consenso branco).
O livro pode ser lido como um exercício de se colocar nos lugares de cada ator branco que lá aparece. Até porque as situações se dão com desconhecidos, mas se dão em relações muito próximas (namorados, pais adotivos, alunos, vizinhos).
Grada kilomba escreve uma obra e tanto. De peso teórico e de compartilhamento do sensível, de experiências.
Kilomba fala sobre a importância do tornar-se sujeito para falar. Eclea Bosi fala sobre desenvolver a habilidade de escutar.
São dois livros que, aparentemente, parecem não ter ligação, não é? Mas o massa de amar os livros é isso: criar pontos de encontros, criar clima para conversas, para reflexões. Afinal de contas, a ideia de um e a ideia de outro é sobre uma pedagogia (a do oprimido). É sobre fala e sobre escuta. Sobre pessoas (os velhos, os negros e racializados (como se nós brancos não fôssemos racializados, né?)) que a todo momento se veem presos em cenas violentas de desumanização e invisibilidade.
É bom pensar sobre, é bom conversar sobre. Estabelecer conversas com os "personagens", entrevistados e autores é massa demais. Mas e vocês, leitores? Querendo trocar ideia, tamo aí. Isso é sobre urgência.

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