Nina Sampaio
3 min readJul 5, 2021

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Fazia tempo que eu não brincava de ficcionalizar. Escrever soltamentente histórias que ouço, que leio, que vivo ou sonho, que de alguma forma chegam a mim, misturá-las aleatória e inventivamente. Misturar vidas e palavras. De repente, me veio algo. Bobo como costumo gostar:

Acordar todos os dias e pensar na mesma pessoa, como num poema do poeta português, onde tudo é um girassol com a cara da amada no meio. Isso lhe parecia demodê ou, para ser exata, anacrônico. Não era mais para ser. Há tempos acordava para defender o sustento do corpo e da alma. Estava se desenhando com empenho e se pensar apaixonada a fazia sorrir de si diante da primeira imagem matinal, madrugadora: "não! Pura invenção de quem sente medo de ganhar o mundo que sempre pensou não ser para si!". Fugia do pensamento e agia o que deveria agir pra ser quem sempre foi, mas havia permitido engavetar no fundo da alma e do corpo que, agora, não mais antigo, se modificava por conta de uma gravidez, que ela teimava em vivenciar de forma prática, bonita, mas não romantizada. Era escritora. Vivia sozinha. Desejava o mundo. O quarto e sala escuro onde vivia não a desanimava. Nem os sonhos malucos que os hormônios lhe proporcionavam. Vencia paixões, vencia o próprio corpo. Em punho, facões para abrir seu mundo. Depois de toda uma vida, prestes a parir outra, era o que lhe restava. Agia em favor de si pela primeira vez e isso havia de ser feito de forma disciplinada. Sua vida à deriva lhe tinha proporcionado um material escrito de boa qualidade, mas desordenado dentro do espaço paupérrimo que habitava. Proporcionou-lhe também essas lembranças suaves de amor que ela tratava de pensar todas as manhãs. Se sentia apaixonada como que para ter fogo no motor que a levaria para. Para onde? Olhar ao redor era desanimador. Olhar para aquela barriga sem sentido, mas também cheia de pulsações, era inominável. No final das contas, ela era uma mulher com um filho na barriga e com sentimentos da filha que fora. Tudo era paulatino. Ainda não era mãe, ainda não era escritora, ainda não era um sucesso, ainda não estava vivendo nada do que planejara e muito menos estava vivendo o que lhe escapava em forma de sonho, poeticamente, diante de espelhos matinais. Pensou num historiador que dissertara sobre o "ainda não". A possibilidade tanto pode ser a esperança quanto o caixão, era isso resumidamente, o que teorizava o intelectual. O entorno concreto dela, a fazia temer o caixão. Isso era mais real que qualquer cara dentro de qualquer girassol. Era mais real que seu filho mexendo dentro dela. Mais real que. Parou de bater aquelas palavras no computador como se fossem batidas à máquina de escrever mais emperrada que qualquer escritor fudido da literatura que ela curtia ler na juventude dela possuísse. Olhou-se no espelho. Um girassol com três pontinhos no meio. O futuro pode ser aberto?

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