Nina Sampaio
3 min readSep 5, 2023

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Saber honrar as avós das outras

Eu não convivi com minhas avós. Minha avó paterna não a pude conhecer porque meu próprio pai nunca o vi na vida. Minha avó materna morreu quando mainha estava grávida de mim. Sete meses de gestação. Faltava pouco para o encontro entre nós três. Não deu para eu e a minha avó nos encontramos neste plano. Mas é fato que, para além dos lutos (o pela morte da mãe e o que o parto traz), mainha era uma mulher que sabia fazer aliança com outras mulheres. Vivia cercada de amigas, salvavam umas às outras de situações difíceis numa reciprocidade que não nomeavam porque eram de fazer as práticas e não teorizavam a amizade profunda em que viviam. E foi assim que eu conheci as mães, as tias, as avós de muita gente: elas eram amigas da minha mãe. Escolhi uma mulher, Aurelina (mãe de uma amiga tão amiga de mainha que virou minha madrinha sem que ambas fossem religiosas de uma religião dominante), para ser minha avó. E assim tem sido até os dias de hoje, ainda que ela tenha, há muitos anos, feito a passagem dela para outro mundo. Foi com Dona Aurelina que aprendi a saber e honrar a avó das outras mulheres. Ela era avó de Karine, que me foi importante porque era neta, junto comigo, de D. Aurelina.
Hoje soube do passamento de uma mulher, filha de uma amiga de mainha. Soube da morte da moça com nome de rainha, e de potente risada, por sua sobrinha, neta de uma amiga de mainha. Noêmia é o nome da avó em questão. Era uma mulher forte, de pele escura, cabelos escorridos, magra, com óculos no rosto e uma visão singular sobre o mundo: lembro de suas mãos com unhas longas, vermelhas, agora. Lembro de eu e mainha saindo de casa, fim de tarde, para irmos para a casa de Noêmia. Elas conversavam conversas que me diziam de adultos e eu brincava de subir em árvores do canteiro em frente à casa de D. Noêmia, canteiro cuidado por ela, com ervas, com temperos, com rosas. Eu não sabia, à época, da importância política da intimidade das mulheres com as plantas: me parecia natural, pois todas elas as cultivavam, trocavam, davam plantas umas às outras. Indicação de chás, de banhos, de defumadores. Havia "religiosidade laica" entre elas. Não eram de igrejas, mas acendiam suas velas, faziam seus pedidos quando as mãos de todas elas juntas parecia não dar conta de algum problema maior. Quando D. Noêmia partiu deste plano, uma luz apagou no semblante de mainha. Eu não entendia, à época, a importância política e curativa de uma amiga na vida de uma mulher. De D. Noêmia guardo essas recordações: gosto pelas plantas, os óculos no rosto, as unhas vermelhas, a amizade com mainha, a árvore na frente da casa, onde eu fiz um pacto de sangue com outra criança. Crescemos e eu e esta menina da árvore nunca mais nos vimos. Mas aprendi a honrar a sua avó e a dizer o nome dela junto do da minha mãe.

As avós não são particulares, da história familiar apenas. E não são porque as avós são mulheres. Mulheres que agem, que têm suas unhas, seus óculos, cultivam suas plantas e suas amigas. As avós são mulheres. E mulheres juntas, em comunidade, são sobre potência e podem fazer diferença na vida, na lembrança de qualquer pessoa. Deise (minha mãe), Noêmia, Regina (a moça com nome de rainha que foi para o Orum tão abrupta e tragicamente), Elida, Aurelina, Lenita, Hélia…: não são nomes apenas: são histórias a serem honradas. Mulheres a serem honradas. Avós que eu aprendi a honrar.

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