Estudos Críticos da Branquitude e Cotas Raciais

Nina Sampaio
8 min readNov 1, 2020
Imagem da ilustradora francesa Malika Favre.

Os Estudos Críticos da Branquitude, têm como marco inicial, nos EUA, os anos 1990. Mas os teóricos de lá admitem a existência da intenção de pensar teórica e criticamente o grupo branco desde os anos 1950, com W.E.B. Du Bois (sociólogo e negro). Aqui no Brasil, consta que se estuda criticamente a branquitude desde os 2000, tendo como marco a tese de Cida Bento, que trata sobre a branquitude dentro das instituições (duas prefeituras do Estado de SP). Bento colhe dados de como as pessoas pretas são vistas e tratadas por pessoas brancas dentro das instituições. Mais especificamente pessoas brancas que trabalham no RH. Mas aqui no Brasil, também não se esquece que nos mesmos anos 1950, tivemos Guerreiro Ramos falando sobre a patologia do branco brasileiro, denunciando que só se estudava aqui o negro (o problema do negro). Ele também sociólogo e também homem negro. Apesar de termos ícones brasileiros brancos estudando branquitude hoje, no Brasil, os estudos críticos da branquitude é resultado da luta do Movimento Negro e foram intelectuais negros que puseram em questão o silenciamento do grupo de brancos em relação a sermos também um grupo racializado. Racializar, provincializar o grupo branco é desestruturar, ou começar a desestruturar, a ideia de que ele é o grupo da norma, da autoridade em beleza, em excelência. Mora aí a importância dos Estudos Críticos da Branquitude. Não é uma moda de Internet. Antes de tudo, é preciso dizer, é resultado de esforços políticos e acadêmicos do povo preto. Dizer que estudar branquitude é moda é, mais uma vez, tentar invisibilizar os apontamentos vindos do movimento negro. Tanto quanto entender que os Estudos Críticos da Branquitude é mais uma vez colocar o branco no centro também é uma leitura rasa e que desconsidera o desenvolvimento do pensamento de intelectuais negros que, como aqui mostrado, vêem desde pelo menos os anos 1950 afirmando a necessidade de estudar o grupo formado por pessoas brancas.

Citei Du Bois e Ramos, mas temos também Fanon (Pele Negra, Máscaras Brancas), Aimé Césaire (Discurso sobre o Colonialismo), Albert Memmi (Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador) que também trouxeram a questão crucial de o branco, durante o período da colonização, ter inventado a si mesmo e ter inventado o negro. Mas ter inventado o negro de maneira a criar vantagem pra si. Foi a invenção do outro inferior. A outrização (que Grada Kilomba e Toni Morrison trabalharam tão bem em Memórias da Plantação e A origem dos outros, respectivamente). Por isso o surgimento do movimento Negritude, encabeçado por Césaire, que foi a tentativa de colar à identidade negra características afirmativas, com vistas a sobrevivência das pessoas negras com o mínimo de saúde mental quando do convívio com pessoas brancas, depois de instada a convivência que se deu de todas as formas, menos com base no contato entre humanos(foi, como ele afirma em seu Discurso, saque, violência e processo de animalização mútuo, pois, à medida em que o europeu animalizava os nativos das terras que invadia, se animalizava a si mesmos).

É bastante legítimo pessoas pretas e do movimento negro se perguntarem sobre a possibilidade de um branco ser de fato antirracista. Todo mundo que se debruça para estudar branquitude criticamente, entende que há fissuras de socialização e possibilidade do surgimento de uma identidade branca antirracista sim, mas o caminho até lá é longo, perpassa questões psicológicas, história de vida, classe, gênero, localidade: a interseccionalidade, instrumento valioso de análise social, pensado por uma mulher negra, Kimberlé Crenshaw, ajuda bastante a entender as possibilidades de fissuras na socialização branca e, assim, a possibilidade de surgir uma branquitude que o professor Lourenço Cardoso chamou de crítica, e o professor Malomalo chamou de antirracista por exemplo. Tudo isso aponta para o fato de que não é um processo simples e nem curto e, o mais grave e apontado pela professora Lia Vainer Schucman: pode ser interrompido a qualquer momento pela simples e nefasta razão de que aos brancos é dada a opção de pensar sobre o racismo, pois se ele parar de pensar criticamente acerca do racismo, ele continuará pertencendo ao grupo considerado norma, considerado o grupo da excelência e predileção e, portanto, continuará gozando dos privilégios de pertencimento racial.

Fala-se também em letramento racial. Sim: somos uma sociedade racista, que aprende o racismo, que internaliza a ideia de hierarquia racial. E, para haver desconstrução dessa ideia, uma educação que ensine outras possibilidades também é um caminho.

Mas em um ponto todos estudiosos da branquitude concordam: não é sobre o indivíduo apenas. O racismo não deve ser encarado apenas como um viés moral. Precisamos que o antirracismo se dê no âmbito das instituições, da legislação, dos espaços. É preciso ocupação dos lugares de poder de decisão também pelos não brancos, pretos e indígenas. E, neste ponto, as cotas são um tema de bastante força e muito caro ao movimento negro e ao movimento antirracista.

E temos, aqui no Brasil, um fator grave de complicação: a ideia da democracia racial. A ideologia do embranquecimento foi uma política desenvolvida com força e a ideia de democracia racial vem para mascarar os conflitos e para criar aquela tática de que bom mesmo é ser branco, mas quando essa superioridade é questionada, de posse do conceito de democracia racial, pode-se afirmar ter o tal do “pé na cozinha”, para abrandar os ânimos e trazer a ideia de sermos todos iguais. É o que acontece em relação às cotas. Não é incomum o argumento de quem se autodeclara negro, mesmo com pele branca, de que tem o avô negro, de que é filho de negro e de que, afinal de contas, aqui no Brasil, somos todos misturados e que é uma bobagem separar as pessoas por raça.

Ainda que o argumento do somos todos misturados e iguais esteja disseminado com bastante força, a prática cotidiana é outra e é muito explícita: o fenótipo é crucial e define o tratamento dado às pessoas nos mais variados lugares. Quanto mais retinta a cor da pele, mais negados são os direitos, mais dificultada é a vida pessoal, estudantil, profissional, de ocupação de lugares, etc. O disparate entre o discurso e a prática é o que nos faz um dos países mais racistas do mundo, porém onde 97% dos entrevistados de um questionário sobre racismo afirmam não ter qualquer preconceito de cor, ao mesmo tempo em que admitem conhecer, na mesma proporção, alguém próximo que já praticou atos discriminatórios. Por este motivo que se fala em racismo à brasileira. Racista é sempre o outro. Mas também é importante lembrar que nas pesquisas de Cida Bento e de Lia Vainer Shucman, pessoas brancas admitem saber que pertencem a um grupo racial que é, em muitas situações, por muitas vezes, privilegiado. E os entrevistados das pesquisadoras citadas, também admitem que pessoas negras sofrem desvantagens em entrevistas de emprego, por exemplo. Porém, não é incomum, essas mesmas pessoas que admitem esses dois fatos, se posicionarem contrárias às cotas raciais. Argumentam que é paternalismo e racismo. Não levam em conta o argumento da reparação, do caminho para equidade e, muito menos, se dão ao trabalho de entender tudo sobre ação afirmativa. Schucman busca entender essa reação por parte do grupo branco como o medo branco de perder o status.

E é por este último motivo que me decidi escrever. Acabo de ver a notícia sobre a autodeclaração como negro do cônjuge de Bela Gil. Branco, de cabelos lisos, traços finos, candidato a vereador na cidade de São Paulo, pelo PSOL, ele argumenta ser filho de uma mulher preta e se entender como negro.

Os estudos sobre famílias e relações afetivas interraciais no Brasil também comporta muitas peculiaridades, especialmente pela política de embranquecimento, pela ideia disseminada de democracia racial e o convívio com um racismo acirrado na prática e no discurso, não, no discurso o escamoteamento das práticas racistas.

Não é muito possível, de fato, pensarmos na existência de famílias totalmente brancas ou totalmente pretas no Brasil. Assim como sabemos que na hora da abordagem policial, não é a gota de sangue que define a delicadeza da aproximação física.

As cotas aqui no Brasil têm sido por autodeclaração, mas, pelo visto, parece que precisaremos, urgentemente, acrescentar o fator leitura social. Sim: como a pessoa é vista e recebida nas entrevistas de emprego, pela polícia nas abordagens, pelos seguranças das lojas em centros comerciais, como é representada nos programas sensacionalistas de televisão, etc. A passabilidade da pessoa pelos lugares porque, sim, vivemos segregações: há lugares onde pessoas de pele negra retinta ou caminham incomodadas ou incomodam enquanto caminham. E ainda há o desenvolvimento de arquiteturas hostis nas cidades, que têm a função de inibir ajuntamentos e sociabilidades.

Diante de tudo isso, infelizmente, por hora, não há como não lembrar, diante da autodeclaração “negro”, para candidatura política, do rapaz muito facilmente lido como branco, de que o conceito de democracia racial deixa, de fato, essa brecha para, pleitear negritude somente quando convém.

Mesmo levando em conta as dificuldades de abrir mão de privilégios solidificados por séculos, a dificuldade de lutar contra, de não manter a imagem de excelência e normatividade apenas para o grupo racial a que pertence, mesmo levando em conta que a questão racial pode ser pensada criticamente até certo ponto por pessoas brancas que têm sempre diante de si a opção de parar a luta e isso não lhe trazer prejuízo material qualquer, ainda assim, todos os estudos aqui citados, sempre apontam a existência de algumas pessoas brancas que leem a branquitude com criticidade e, após enxergarem-se como também racializados, após entenderem que fazem parte de um grupo que, historicamente, é o grupo dominante e que, por isso, podem gozar, ao menos pública e psicologicamente, de privilégios (é bom levarmos em conta que outros fatores influenciam a branquitude, como já entendemos a partir da interseccionalidade. E também é por esse motivo que se fala em branquitudes no plural. Sim, a questão sempre tão cara à maioria das pessoas: “e o branco quando é pobre?” também é levada em conta, mas não anula a importância de pensar raça. Como tudo nesse campo: é mais motivo para muito estudo, para evitar a má fé e as leituras apressadas), não se opõem a medidas reparativas e que contribuam para trazer outros grupos raciais para o campo da excelência, da humanidade, sendo favoráveis à existência de diversidade racial em todos os lugares, especialmente nos de tomada de decisão. E que, por tudo isso elencado, desejam (e de fato desenvolvem) relações afetivas com pessoas de outros grupos raciais de maneira não hierárquica. Podemos resumir dizendo que se pode detectar indivíduos brancos com letramento racial crítico.

Não parece ser o caso de quem, diante da história política, econômica, social — todas atravessadas pela história racial, porque raça, para a gente deste país, não é recorte, é estrutura — do Brasil, sendo lido como branco, se autodeclara negro. Por que, ao contrário, não investir numa campanha de cunho antirracista, abertamente antirracista, mas a partir do lugar de pessoa branca letrada criticamente no que diz respeito a raça?

Definitivamente, se perguntar qual o lugar do branco na luta antirracista é legítimo, incluindo a desconfiança (que o branco interessado em se posicionar contra o racismo deve acatar e entender, abrindo mão de sua fragilidade diante do contato e do questionamento). Mas, a resposta, também definitivamente, não está em se dizer negro sem o ser, num país onde o fenótipo é critério inclusive de decisão para quem pode ser morto. Desse modo, mais uma vez, se silencia a branquitude, se vela (ou tenta velar, cortinar, esconder) a branquitude enquanto invenção de si, invenção de uma raça superior. Não sei se o rapaz em questão tem ciência desses fatos. Mas já não é mais tempo de inocência. Inclusive, uma das vantagens, um dos privilégios, e uma das características de ser branco que desempenha branquitude sem criticidade é o de poder gozar dessa inocência, desse “eu não sabia, eu não via”. Os tempos são de nomear, mas sempre com a justiça como propósito, não mais para a manutenção de hierarquia.

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