Burrice, má fé ou medo branco?

Nina Sampaio
5 min readJun 11, 2020

Tenho lido, nas mais variadas páginas de redes sociais de intelectuais negros e negras antirracistas, depoimentos de cansaço por conta de uma enxurrada de pessoas brancas a pedir sugestão de como ser antirracistas, o que ler, onde encontrar o material para ler…a famosa indagação como posso ajudar? Feita não a si mesmas, não a pessoas de seu grupo racial: feitas a figuras públicas negras.

O cansaço dessas pessoas é totalmente compreensível. Não precisa ser um gênio para entender o porquê.

Pois bem, as pessoas brancas fazem isso porque estão bem intencionadas mas de fato não sabem por onde começar ou essa é mais uma tática de má-fé para nebular a discussão ou sequer começá-la, o que leva a jamais haver ação antirracista também? Vamos tentar entender com mais complexidade.

Estudo há três anos branquitude. Branquitude na literatura brasileira. Mais especificamente como a branquitude é representada em três obras da literatura brasileira. As obras são de escritoras negras. Mas eu não investigo as escritoras negras, meu objeto de estudo é a branquitude.

Não tem sido uma pesquisa fácil de desenvolver simplesmente porque a branquitude não gosta de estar no lugar de objeto de estudo, uma vez que a branquitude tem disputado fervorosamente o lugar de detendora do saber dominante: os brancos estudam, não são estudados. Os brancos sequer se enxergam como racializados.

Mas para contrariedade dos representantes do universal: nós, brancos, somos racializados, nós, brancos, somos vistos e analisados. Por este motivo, literatos, literatas, intelectuais, cineastas, artistas, etc. pensaram e pensam sobre a gente enquanto grupo social.

Assim como bell hooks disse que falaria sobre masculinidades porque os homens não estavam atentos à urgência de conversar sobre o assunto para intentar relações mais equilibradas, mas que esperava que eles tomassem a rédea do assunto a partir da iniciativa dela, a branquitude foi, aqui no Brasil, abordada pela primeira vez teoricamente, nos anos 1950, por Guerreiro Ramos, intelectual negro. Ele usou os termos branquidade e brancura, mas o ponto chave era que havia uma patologia do branco brasileiro, o problema nas relações raciais não era do negro, era do branco que insistia em não se integrar e desejava branquear tudo ao seu redor num delírio europeizante. Mas antes, em 1859, com o romance “Úrsula”, Maria Firmina dos Reis já desenhara no mínimo dois tipos de branquitude — a escravagista e a abolicionista — em seu trabalho. Ela também era negra.

A partir dos anos 1990 nos EUA e dos 2000 aqui no Brasil, a branquitude passou a ser estudada por pessoas brancas também. Assim como hoje temos homens estudando masculinidades. Antes tarde do que nunca.

Mas é fato que não se estuda branquitude de forma complexa sem ler pensadores negros. Assim como não se pensa masculinidades sem ler mulheres, especialmente sem ler as feministas negras. São elas, as feministas negras, que dão pontapé inicial em vários assuntos urgentes na construção de um mundo mais justo para todo mundo. Não tem para onde correr: é o que Angela Davis disse sobre o mundo todo se mover quando uma mulher negra se movimenta.

Assim, para estudar branquitude, tenho lido mulheres e homens negras e negros.

Em seu livro “Empoderamento”, Joice Berth traz dois conceitos cunhados pela Dra. Kristie Dotson, que são o testemonial smothering, sufocamento testemunhal, em português e o pernicious ignorance, que podemos traduzir por ignorância prejudicial. Berth nos diz que o primeiro silencia grupos oprimidos e contribui pra que haja atraso na produção de conhecimento (distribuição, circulação, etc). E o segundo, que se constitui mesmo em violência epistêmica: “atinge saberes e conhecimentos da população negra no sentido de haver uma deliberada ação no sentido de dificultar o acesso e negar a produção intelectual dos grupos historicamente oprimidos. Essa ignorância advém do fato de as classes dominantes perpetuarem a manutenção das desigualdades e lutarem de todas as formas contra a perda da hegemonia do discurso único”.

Pois bem, quando a branquitude não dá conta de silenciar os discursos e as produções intelectuais de negros e indígenas, tenta dar conta de bancar ignorá-los. É a ignorância perniciosa. É a vontade de que essas vozes não existam, não ecoem. Aqui, nós entendemos que se elege agir de tal forma por uma má fé acionada e justificada pelo medo. Medo de perder poder.

Sim, é óbvio: basta ir até a caixa de pesquisa do buscador mais famoso da Internet que a pessoa encontra artigos, filmes, livros, músicas, aulas, HQ’s, obras pictóricas sobre todo e qualquer assunto que desejar. Mas não é essa a questão de quem vai perguntar a um/uma intelectual ativista negro/negra, indígena como pode ajudar na causa. As pessoas brancas que vão perguntar como podem ser antirracistas, como se houvesse dificuldade em encontrar as tantas produções intelectuais sobre o assunto, estão sob a chave de funcionamento, pactuando — consciente ou inconscientemente (aqui no sentido senso-comunal de sabendo ou não sabendo) — com os guardiões da supremacia branca, pois estes lidam muito bem com o invisível: sabem tornar os outros invisíveis para emudecê-los e sabe tornarem-se invisíveis para que nunca sejam debatidos.

O medo de perder o domínio sobre a maneira de fazer enxergar o mundo é tão grande para a branquitude que as produções de pessoas brancas sobre o assunto também são expatriadas, uma vez que estas romperam o pacto narcísico com o seu grupo de pessoas brancas e merecem o silenciamento perpetrado em dificuldade de distribuição de conhecimento, de espaço para publicizar e democratizar o tema. A branquitude acrítica não se permite pensar a possibilidade de mulheres e homens de seu próprio grupo social produzindo conhecimento que tenta romper o status quo delegado aos seus pares.

Por esses motivos é que não me furto a dizer que os tormentos dos “me ensine a ser seu aliado” que personas públicas negras têm vivenciado nos últimos tempos em que a hashtag “vidas negras importam” passaram a povoar as redes sociais, em sua grande maior parte, advém do pacto com uma ignorância perniciosa, feito pela dificuldade que pessoas brancas sentem de se apartarem de salários psicológicos, privilégios cotidianos em prol de melhor distribuição de justiça social que se pode fazer quando se faz justiça racial. Não é uma questão de burrice, mas de ignorância prejudicial, de má fé provocada por medo de perda de hegemonia.

O caminho para erradicar a ignorância prejudicial é, sem dúvida, a distribuição de conhecimento, a publicação e leitura de livros que tratem sobre o assunto, é um número gigantesco de pessoas trazer à tona as produções artísticas e intelectuais de pessoas pertencentes a grupos não hegemônicos para estancar epistemicídios e colocar de maneira séria a pauta antirracista.

No texto, há menção à obra “Empoderamento”, da arquiteta Joice Berth, da Editora Pólen, Coleção Feminismos Plurais, 2019.

A imagem que ilustra o texto foi retirada da internet.

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