Bracelete de Osun -um relato pessoal

Nina Sampaio
3 min readJun 27, 2021

“Aquele homenzinho de preto ali, ele diz que as mulheres não podem ter os mesmos direitos do que os homens porque Cristo não era uma mulher. E de onde veio Cristo? (…) De onde veio seu Cristo? De Deus e de uma mulher! O homem não teve nada a ver com ele”. (Sojourner Truth)

“Eu sou um bracelete de Osun. Fico profundamente ofendida quando as mulheres são maltratadas” (Carla Akotirene)

Ontem fui vacinada. No grupo prioritário de mulheres grávidas e puérperas. A prefeitura de Aracaju publicou no Instagram o ponto de vacinação do grupo por volta de meio-dia de ontem e o aviso falava das 8:00 às 16:00h. Se houve divulgação por outro meio antes, eu não tenho notícia. A maioria das mulheres na fila disse ter sabido há pouco e muitas se questionavam sobre quem soube e pôde ir pelo período da manhã. Quem chegou ali, chegou esbaforida com a notícia repentina da liberação da vacina. E não fomos poucas. A organização das piores. Eu enfrentei três horas e quinze minutos de fila. Muitas ali enfrentaram mais que isso. Algumas se recostavam em batentes finos de jardim para descansar dos incômodos da gestação ou para alimentar seus recém-nascidos. Tudo sob sol. Foram três filas. A do meio deu oportunidade de uns 20 minutos sentadas num auditório com ar condicionado. Se tudo isso é da ordem do indecoroso, o mais sério eu testemunhei: uma grávida com a barriga pela boca, os pés inchados e a pele retinta (há que se falar sobre sim) fora embargada, após três horas de espera na fila: o comprovante de residência em nome de seu esposo não servia porque eles não conseguiam comprovar a união. Sob a dureza dos gritos impacientes do funcionário, ela chorou, no canto para o qual fora mandada ficar enquanto outras de nós passávamos para o auditório sob conferência desleixada de nossos documentos. O meu comprovante de endereço mal fora olhado (o de uma branca de olhos verdes e cabelos lisos há que constar). Lá dentro, juntas de novo, nós as próximas de fila da moça embargada, levantamos a injustiça do que acontecia lá fora. Lembramos que a residência no município poderia ser comprovada pelo cartão pré-natal do SUS. Depois de muito fuzuê, a moça foi readmitida entre nós e foi vacinada. Outros desmandos aconteceram na longa tarde nas filas de espera. Mas esse foi o que mais me marcou. O SUS é mais do que necessário. E devemos defendê-lo. A denúncia não é sobre mal funcionamento do SUS. É sobre a desorganização da prefeitura ao que tange o grupo de grávidas e puérperas na fila “prioritária” da vacinação contra Covid. E é sobre misoginia e racismo. Essas palavras que ninguém ousou dizer ontem, ou que talvez muitas ali sequer soubessem trazer pro campo do racional para explicar o que estava acontecendo. Além do fato de como tratam a população que visualmente eles definem como pauperizada. Precisamos avançar na desburocratização que não é o mesmo que Estado mínimo para população carente (vulgo privatização que não muda esse tratamento e ainda o piora e estratifica). Precisamos avançar na decolonização das mentes de funcionários, de usuários. Pensar de fato em vivermos vida digna. Que sigam as vacinações, que siga a CPI sobre os desmandos do governo federal na ingerência da crise sanitária. Que tenhamos bons resultados em todos os âmbitos. As mulheres continuam parindo, uma nova geração se dando. Tudo isso é sobre responsabilidade política de todos nós. Os corpos grávidos e em puerpério ontem, na fila do auditório do Colégio Presidente Vargas sofreram. Mas não para na gente, em nossos corpos, todo esse descalabro. Quando não se tem o corpo tal, recorre-se a um instrumento político bastante válido: a imaginação. Aí a briga vira comunitária de fato e os resultados bons para todos. Briguemos.

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